Rotas Brasileiras 2024

Rotas Brasileiras 2024

28 ago 24 - 01 set 24

O MAM São Paulo integra pela primeira vez o grupo de expositores institucionais da feira Rotas Brasileiras, que realiza a sua terceira edição em 2024. Apresentamos um conjunto representativo das obras comissionadas para o Clube de Colecionadores, inaugurado em 1986 com o objetivo de estimular a produção artística do período e que continua a incentivar e democratizar o colecionismo de arte. Perto de completar quarenta anos, é o programa institucional mais duradouro do museu, que preserva em sua coleção permanente exemplares de todas as edições já realizadas.

Junto às obras selecionadas pelo curador-chefe do MAM, Cauê Alves, para a edição 2024-25 do Clube, é apresentada também a escultura de Arcangelo Ianelli realizada por ocasião dos 75 anos do museu, celebrados em 2023. Ianelli foi uma figura muito ativa na trajetória institucional do museu, em especial no período entre as décadas de 1960 e 1990. Elaborada a partir de um desenho inédito, a edição comemorativa da escultura sem título (1990/2023) é sumária de toda sua obra. Ela possui o aspecto fosco de suas pinturas e também evoca a busca vitalícia do artista pela essencialidade, da cor e da forma. A obra é constituída por dois elementos planos de aço que, dobrados, se erguem e se escoram um no outro. Entre eles, uma pequena fresta permite a passagem de luz, que ameniza a densidade do material e da cor. A opacidade das superfícies pretas, porém, absorve muito da luminosidade e suas nuances, preservando de forma sólida o equilíbrio instável e o movimento contido nas aberturas formadas pelas dobras do metal.

Complementando esse conjunto, foram selecionadas outras edições do Clube do MAM comissionadas desde os anos 2000, buscando demonstrar o contingente representativo da arte contemporânea brasileira que esse programa tem sido capaz de formar. Tal contingente compreende desde as tradições figurativas, abstracionistas, e construtivistas que foram amplamente institucionalizadas ao longo do século passado, como também consolida a extensa produção de arte conceitual no Brasil e as experimentações de técnica e linguagem que essa e outras produções tem anunciado. Esse é justamente um dos fatores que destacam a produção brasileira na arena globalizada da arte contemporânea: a sua capacidade de criar formas novas e inusitadas ao tensionar o lastro dos cânones visuais à medida que eles são incontornavelmente contestados pelas condições do presente.

A gravura Mapa-mundi político - escala 1:1 (2010) de Marcius Galan se apropria de um material que se supõe objetivo — o mapa — para tratar, com muita ironia, da insignificância da sua capacidade representativa. Ao descumprir a função anunciada no título, já que não apresenta de forma evidente as formas e contornos que delimitam territórios, a obra sugere uma relativização da própria definição do “mapa político”. A escala 1:1 indica que o mapa representa o espaço na mesma proporção de tamanho do espaço real, mas a superfície uniforme e monocromática que se apresenta não apenas impossibilita discernir o que é representado, como também deposita sobre o espectador a necessidade de se localizar no mundo político, na medida em que a escala de representação desse suposto mapa agiganta a linha colorida que geralmente demarca as fronteiras. O uso do vermelho, cor carregada de sentidos políticos, não é, portanto, gratuito. 

A gravura Nheru “Existe uma cidade sobre nós” (2021) de Xadalu Tupã Jekupé e a fotografia Pindorama (2017) de José Patrício representam figuras indígenas de formas diferentes, mas ambas questionam a posição que elas ocupa na narrativa estandardizada sobre a história e cultura nacionais. A obra de Xadalu Tupã Jekupé apresenta uma cabeça indígena muito similar às gigantescas cabeças esculpidas por André Arjonas e colocadas sob colunas na base da catedral de Porto Alegre. A posição que essas cabeças ocupam na edificação é simbólica da dominação do cristianismo sobre a cultura indígena e do extermínio dos povos originários. A figura na gravura comissionada pelo Clube, por sua vez, segura uma espécie de lápide onde se lê, em guarani, “Existe uma cidade sobre nós”, em referência direta ao soterramento do território indígena e de seus vestígios arqueológicos para a construção de Porto Alegre e de várias outras cidades brasileiras.

A fotografia de José Patrício representa uma figura indígena de forma muito idealizada fazendo uso de elementos estereotípicos, como o cocar, o arco-e-flecha, e o cenário de mata selvagem. Do lado oposto a essa figura, aparece uma tarja de azulejos tipicamente portugueses. A sua ordenação quadriculada se estende por toda a composição, com exceção de uma faixa branca, que separa a paisagem e a figura indígena dos ladrilhos de origem lusitana. A textura dessa área branca produz o efeito da pintura sobre alvenaria, como se a obra aproximasse numa mesma parede dois emblemas da versão romantizada da história da colonização do Brasil, denunciando a sua falsa unidade.

As gravuras Geometria/Flores (2017), de Wanda Pimentel, e Cubano (2017), de Marina Rheingantz, flertam com a abstração através de diferentes técnicas e demandam a aproximação do espectador para serem completamente percebidas. Na gravura de Wanda Pimentel, a composição resulta da sobreposição de diferentes matrizes, que, pela variação de tons e tamanhos, produz um efeito de distanciamento entre as manchas. Ao combinar elementos formais do desenho, através das linhas que estruturam o espaço pictórico, e da pintura, pela homogeneidade sinuosa das manchas ao fundo e pelos densos pontilhados vermelhos do primeiro plano, a composição realiza um contraste que obtém sentido justamente na aproximação. A incompatibilidade de diferentes linguagens ou temas é negada pela sobreposição, cuja imagem abstrata resultante atrai o olhar do espectador para dentro de seu espaço, onde a beleza artificial de ordem geométrica convive com a beleza natural das formas florais.

Ao requerer um olhar de perto, inclusive para que seja possível ler a palavra que ancora a composição, a escala diminuta da litografia de Marina Rheingantz sugere um diálogo com a intimidade. Um diálogo que não se dá apenas pela interpretação de “conxinha” no sentido da expressão usada para referenciar o modo como corpos se unem em momentos de intimidade, encaixados um no outro, mas também através da alusão às conxas do mar, que, cindidas dos corpos que um dia as habitaram, emergem nas areias das praias e se oferecem a outros corpos, desde que se abaixem para se deter a elas. Nesse sentido, os traços curtos e coloridos que compõem a imagem, e que derivam da vasta produção em pintura da artista, tornam-se elementos desintegrantes de uma paisagem, de um corpo, ou de uma situação qualquer, em que a intimidade é o dado imanente do desejo por reintegração e união.

Nas gravuras Yes, nós temos bananas… (2001), de Nelson Leirner, e Título (2005), de José Damasceno, reflexões sobre a cultura brasileira e seus cânones também entram em jogo. A obra de Nelson Leirner figura dois símbolos nacionais em repetição: o primeiro, a bandeira, é o símbolo mais inerente e irrevogável ao país, que o distingue das demais nações do mundo; o segundo, as bananas, é eleito pelo artista em diversos momentos da sua produção como emblema da condição nacional, especialmente quando elucidada pelo viés da mercadoria. Usando-se do formato e da materialidade dos selos postais, que remetem a processos de correspondência e troca, inclusive internacional, essa gravura sugere que há uma relação direta entre aquilo que ofertamos ao mundo como símbolos uniformes da nossa nação e a transformação desses símbolos em ícones para exploração e consumo. Além disso, o artista realizou um acabamento para a gravura que propõe um jogo de percepção e investigação: cada uma das cem gravuras da tiragem tem um selo de banana colado sobre um dos selos que foram impressos diretamente sobre o papel. O jogo está em encontrar esse selo entre tantas imagens iguais.

A gravura de José Damasceno consiste simplesmente do texto “vale o escrito”. Posicionado no centro da parte superior do suporte, que tem quase o tamanho de uma folha A4, esse texto faz referência direta ao jogo do bicho, um jogo de apostas ilegal, mas amplamente disseminado, especialmente no Rio de Janeiro, onde foi criado no final do século 19. Isso é porque nesse jogo ilegal a única garantia que o apostador tem é que o resultado do sorteio é válido à medida que está escrito; ainda mais antigamente, quando os números sorteados eram escritos e afixados em postes de rua, próximos aos pontos de aposta. A partir dessa referência, a obra se dirige às forças que se operam por trás e através desse jogo e que se relacionam diretamente com a cultura e com as dinâmicas sociais, econômicas e políticas do Rio de Janeiro. Ainda, a latência dessa expressão impressa em preto contra o fundo branco do papel amplia as possibilidades de sentido para além da relação com o jogo do bicho. Como uma espécie de tautologia, a gravura também alude à ideia de que o valor da obra de arte se dá sobre aquilo que ela conforma, o que, por sua vez, só constitui a obra à medida que tem sentido e valor atribuídos. Além disso, aproximar a ideia de “escrito” às noções de “registro” ou “documento” possibilita relacionar a expressão aos critérios que consolidam as narrativas sobre a história: os relatos e memórias oralmente transmitidos e os patrimônios imateriais são frequentemente não valorizados ou sequer considerados nesta consolidação. 

 

Gabriela Gotoda

Curadoria MAM São Paulo

 

artistas

André Ricardo (São Paulo, SP, Brasil, 1985) | Arcangelo Ianelli (São Paulo, SP, Brasil,1922 - São Paulo, SP, Brasil, 2009)| George Love (Charlotte, Carolina do Norte, Estados Unidos, 1937 – São Paulo, SP, Brasil, 1995) | José Patrício (Recife, PE, Brasil, 1960) | Laura Lima (Governador Valadares, MG, Brasil, 1971) | Lucia Laguna (Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, 1941) | Marcius Galan (Indianápolis, Estados Unidos, 1972) | Marina Rheingantz (Araraquara, São Paulo, SP, 1983)| Nelson Leirner (São Paulo, SP, Brasil, 1932 - Rio de Janeiro, RJ, 2020) | Wanda Pimentel (Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1943 - Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2019) | Xadalu Tupã Jekupé (Alegrete, RS, 1985)

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