ArPa 2024

ArPa 2024

26 jun 24 - 30 jun 24

Na terceira edição da ArPa Feira de Arte, o Museu de Arte Moderna de São Paulo integra o grupo de expositores institucionais apresentando em seu estande um conjunto representativo de obras comissionadas para o Clube de Colecionadores. Fundado em 1986 com o objetivo de estimular a produção artística do período, o Clube do MAM continua a incentivar e democratizar o colecionismo de arte. Perto de completar quarenta anos, é o programa institucional mais duradouro do museu, que preserva em sua coleção permanente exemplares de todas as edições já realizadas. Além das obras que compõem a edição de 2024–2025 do Clube, selecionadas pelo curador-chefe do MAM, Cauê Alves, o conjunto apresentado pelo MAM na ArPa contempla outras edições emblemáticas realizadas nos últimos vinte anos. Tais edições exprimem características marcantes da produção geral dos artistas aqui reunidos, que aplicaram diferentes recursos para a realização de seus múltiplos. Transitando sem cerimônia entre a gravura, a fotografia e a escultura, as obras a um só tempo desafiam os procedimentos estéticos convencionais e demonstram a transdisciplinaridade da arte contemporânea e dos comissionamentos do Clube do MAM nas últimas décadas.

Na xilogravura Noite e Dia (2009) de Ernesto Neto (Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1964), artista cuja produção se expressa principalmente em esculturas e instalações imersivas que estabelecem diálogos conceituais sobre a natureza e seus elementos, dois signos universais de tempo e espaço são evocados: a noite e o dia. Usando-se da literalidade do texto, o artista apresenta duas ideias que, apesar de opostas, são diametralmente referenciais: a noite leva ao dia, e o dia desemboca na noite. Um não está no mesmo tempo que o outro, mas estão contidos mutuamente em um único espaço, como os pontos mais extremos do mesmo movimento pendular. Na gravura de Ernesto Neto, essa dinâmica é também representada pela forma escura e seu miolo branco. As duas manchas se sobrepõem numa elucidação visual da relação entre a noite e o dia, enfatizada pelas formas que remetem a úvulas, onde uma cor parece deglutir a outra. Apesar disso, o contraste é preservado como resultado direto do procedimento de criação da xilogravura, que, na imagem impressa, deixa na cor do suporte a área que foi extraída da matriz. Trata-se, portanto, de um trabalho conceitual que elucida tanto a dinâmica de complementação e oposição mútuas entre a noite e o dia, quanto as possibilidades de investigação estética e teórica sobre a natureza da gravura.

As gravuras de Hércules Barsotti (São Paulo, SP, Brasil, 1914 –2010) e Sérvulo Esmeraldo (Crato, CE, Brasil, 1929 – Fortaleza, CE, Brasil, 2017) foram realizadas a partir de duas técnicas distintas: a serigrafia e a litografia. Sendo um profícuo discípulo de Max Bill no Brasil, Barsotti foi integrante ativo do grupo de artistas do Neoconcretismo, formado principalmente por cariocas. A partir da elaboração e da composição geométrica de campos de cor, Barsotti experimentou com o efeito de tridimensionalidade sobre diferentes suportes bidimensionais, incluindo a pintura sobre telas em formatos poligonais. Na gravura sem título (1985/2006) realizada para o Clube do MAM, o artista partiu de uma pintura de 1985 para fabricar a imagem impressa, com campos cromáticos que variam entre o azul e o vermelho em formatos triangulares distintos. Esses triângulos se sobrepõem na configuração de um quadrado deslocado em 45o, como um losango reto, em cujo centro culminam os triângulos mais obtusos que produzem o efeito virtual de volume ressaltado. De forma sumária, essa obra representa experimentos óticos e formais que Barsotti elaborou ao longo de sua produção e que contribuíram para a tradição da arte construtivista no Brasil.

A litogravura sem título (2015) de Sérvulo Esmeraldo também se insere nessa tradição, ao mesmo tempo que apresenta concisamente as formulações do artista sobre uma tridimensionalidade expandida para além da matéria. Esmeraldo foi um dos precursores da arte cinética no Brasil, mas sua produção inicial foi distinta pelo trabalho em gravura, especializando-se em técnicas diferentes, como a xilogravura, a gravura em metal e a própria litografia. Na obra comissionada pelo Clube, uma área retangular sem cor parece se aprofundar para dentro do plano, de onde emergem áreas coloridas em verde e cinza, que sugerem volume e sombra virtuais, produzidas pelo suposto aprofundamento. Essa ilusão ótica desestabiliza a viabilidade de uma relação definitiva entre a figura e o fundo, produzindo uma imagem que demanda a apreensão visual de vários pontos, algo atípico ao suporte bidimensional.

As obras comissionadas de Vânia Mignone (Campinas, SP, Brasil, 1967) e Tatiana Blass (São Paulo, SP, Brasil, 1979) foram realizadas a partir da combinação de procedimentos da gravura, fotografia e da pintura. A produção de Mignone é marcada por um desenho cuja densidade e força do traço remete à xilogravura, mesmo nas pinturas pelas quais a artista é reconhecida. Na obra Paisagem (2006) produzida para o Clube do MAM, a artista realizou uma impressão xilográfica em formato horizontal. O suporte favorece uma imagem ampla de uma paisagem cujos os elementos visuais se relacionam longitudinalmente sem uma clara hierarquia entre os planos. Após a impressão da imagem com seus elementos e, mais especificamente, seus contornos, Mignone trabalhou a intensidade formal com a pintura acrílica. Ao introduzir a cor em áreas pontuais — o céu, os troncos dos pinheiros, e uma porção de área curvada que cruza a paisagem até o horizonte — a artista produziu contrastes elementares na composição. De forma análoga à sua obra geral, o desenho gravado aqui gera desconforto e inquietação devido à autonomia quase-tátil das marcas xilográficas, que expressam com agudeza um estado emocional.

O tríptico Delta Del Tigre – Naufrágio (2012) de Tatiana Blass incorpora a serigrafia como um procedimento de pós-edição das imagens fotográficas. O trabalho retrata a paisagem fluvial da cidade de Tigre, na Argentina, localizada no delta do Rio Paraná e rodeada por canais e pequenos rios. Porém, ao invés de ser apresentada como o destino turístico suntuoso pelo qual a cidade é conhecida, a paisagem do rio surge na fotografia preto-e-branco e é pontuada pela presença de embarcações aparentemente abandonadas. A produção de Blass é caracterizada pela investigação acerca da imposição narrativa da imagem, da sua linguagem visual e simbólica. Através de jogos de sentido imprevistos, que deslocam elementos e objetos de sua forma e uso originais, Blass ameaça o poder construtivo da imagem com a iminência de sua própria encenação. No tríptico comissionado pelo Clube, as imagens da paisagem são atravessadas em diferentes níveis por manchas amarronzadas impressas sobre as fotos através da serigrafia. À esquerda, a mancha corresponde à altura do rio, tocando a parte de baixo do barco como se o sustentasse; ao centro, a mancha está abaixo do nível da água e deixa à vista o topo de uma embarcação que afundou; e, à direita, a mancha marrom se impõe sobre o rio e a embarcação, que também parece submergir gradualmente. O corte geométrico produzido pelas manchas remete a procedimentos compositivos da pintura, mas tem como resultado um ímpeto de diluição e esgarçamento da imagem. Ao passo que Mignone e Blass combinaram procedimentos de diferentes linguagens artísticas às técnicas de gravura e fotografia respectivamente, a obra Seu nome como título (2010) que Laura Lima realizou para o Clube de Colecionadores do MAM opera uma completa abertura da compreensão sobre o que é a produção em múltiplo. Lima projetou seu trabalho para a dimensão do espaço e do corpo do espectador ao produzir um objeto-máscara com uma folha de papel recortada, um fio de barbante e um suporte em acrílico. Neste trabalho, o processo de gravação é tomado meramente como ideia, estando presente apenas na padronização dos recortes por onde pode atravessar o olhar do espectador, cuja presença e interação com a obra é cara à fruição da obra geral de Laura Lima. Além disso, este comissionamento do Clube é um exemplo das proposições que desafiam os limites das linguagens tradicionais da arte, emprestando de uma ou de outra os princípios necessários para conformar a sua única condição: a possibilidade de ser reproduzida.

Em 2023, por ocasião dos 75 anos do MAM São Paulo, foi comissionada uma tiragem de setenta e cinco exemplares de uma escultura de Arcangelo Ianelli. Como artista e como profissional do meio, Ianelli foi uma figura muito ativa na trajetória institucional do museu, em especial no período entre as décadas de 1960 e 1990. Elaborada a partir de um desenho inédito, a edição comemorativa da escultura sem título (1990/2023) é sumária de toda sua obra. Ela possui o aspecto fosco de suas pinturas e também evoca a busca vitalícia do artista pela essencialidade, da cor e da forma. A obra é constituída por dois elementos planos de aço que, dobrados, se erguem e se escoram um no outro. Entre eles, uma pequena fresta permite a passagem de luz, que ameniza a densidade do material e da cor. A opacidade das superfícies pretas, porém, absorve muito da luminosidade e suas nuances, preservando de forma sólida o equilíbrio instável e o movimento contido nas aberturas formadas pelas dobras do metal.

 

Gabriela Gotoda
Curadoria MAM São Paulo

 

artistas

André Ricardo (São Paulo, SP, Brasil, 1985) | Arcangelo Ianelli (São Paulo, SP, Brasil,1922 - São Paulo, SP, Brasil, 2009) | Ernesto Neto (Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1964) | George Love (Charlotte, Carolina do Norte, Estados Unidos, 1937 – São Paulo, SP, Brasil, 1995) |Hércules Barsotti (São Paulo, SP, Brasil, 1914 –2010) | Laura Lima (Governador Valadares, MG, Brasil, 1971) | Lucia Laguna (Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, 1941) | Sérvulo Esmeraldo (Crato, CE, Brasil, 1929 – Fortaleza, CE, Brasil, 2017) | Tatiana Blass (São Paulo, SP, Brasil, 1979) | Vânia Mignone (Campinas, SP, Brasil, 1967)

 

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